Lobisomens de Brasília
Por Tadeu Breda
No mês em que completa 50 anos, a Capital também comemora o início das obras do primeiro Bairro Ecológico do Brasil, cuja construção deverá derrubar 150 mil árvores nativas e desalojar a única comunidade indígena instalada tradicionalmente no cerrado do Distrito Federal
Foto: Índio San
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Korubo gosta de construir casas em cima das árvores. Apurando a vista é possível identificar algumas delas escondidas entre os galhos retorcidos que se espalham pelo horizonte do cerrado. Uma ou duas ripas de madeira, presas com cordas ou pregos, servem de cama, e um pedaço de plástico eventualmente faz as vezes de teto. No alto, ele encontra refúgio seguro contra as surpresas da madrugada.
Ultimamente, no entanto, as noites não têm sido das mais tranquilas. A altura o protege dos animais que perambulam pela escuridão, mas na verdade não são os bichos da mata que o deixam de orelha em pé. "Fico acordado até tarde para afugentar o lobisomem", diz .
A mesma fogueira que cozinha nosso jantar também ilumina seu rosto. Korubo é um índio de cabelos ralos e longos, corpulento apesar da baixa estatura. A mistura de português com espanhol que sai de sua boca é fruto dos anos que viveu na Amazônia, em uma região da floresta que não enxerga fronteiras entre o Brasil e o Peru. Nosso encontro, porém, se dá no Planalto Central, em noite de lua cheia. O céu está forrado de estrelas e o olhar de Korubo deixa transparecer que, pelo menos nestas paragens, a aparição da criatura que é lobo e homem ao mesmo tempo, não está condicionada aos caprichos do calendário lunar.
O que perturba o sono de Korubo e dos demais índios que vivem na Terra Indígena do Bananal, localizada dentro do perímetro urbano de Brasília, é o avanço das obras que pretendem erguer exatamente ali, ao preço de R$ 8 mil o metro quadrado, o bairro mais moderno e ecologicamente correto que a capital da República jamais viu em 50 anos de história.
O medo de Korubo tem suas raízes em 1987. Foi nessa época que o urbanista Lúcio Costa, já octogenário, viajou a Brasília a convite do governo Aparecido de Oliveira e redigiu algumas observações sobre o crescimento da capital. O Distrito Federal estava prestes a completar três décadas de existência, e Costa achou pertinente opinar sobre os rumos da cidade modernista que havia projetado em parceria com Oscar Niemeyer. Assim nasceu um documento intitulado Brasília Revisitada.
Entre muitas sugestões pensadas no sentido de não descaracterizar o projeto original, Lúcio Costa escreveu que o Plano Piloto, se necessário fosse, poderia expandir o alcance de seu concreto em direção a dois bairros ainda inexistentes. A eles deu o nome de Oeste Sul e Oeste Norte. O urbanista não deixou nenhum desenho que ilustrasse suas derradeiras ideias, mas, segundo seus escritos, as novas aglomerações residenciais deveriam se localizar em áreas contíguas às Asas Sul e Norte, como se fossem os elevadores - aquelas asinhas traseiras - do avião que se traveste de cidade quando se contempla Brasília do alto. Para os novos setores, Lúcio Costa previu quadras com edifícios de três pavimentos e superquadras com prédios de seis andares, deixando bem claro que a expansão urbana do Plano Piloto deveria "responder à demanda habitacional popular" e também à classe média.
Brasília Revisitada traz ainda uma série de anotações que jamais encontrariam cabida no cotidiano da cidade. O desejo de Lúcio Costa era ver uma capital sem engarrafamentos e com um sistema público de transportes eficiente e moderno, mas basta ir a Brasília para perceber que a quantidade de veículos - aproximadamente um para cada dois habitantes - inviabiliza a fluidez do tráfego na hora do rush. Os ônibus em geral são antigos e transportam pouco mais de 14 milhões de passageiros ao mês. A orla do Lago Paranoá, que o urbanista idealizou para ser de livre acesso a todos, está tomada por condomínios de luxo e outras edificações irregulares que privatizaram boa parte da praia dos brasilienses. A intenção de promover um crescimento ordenado das chamadas cidades-satélites também se veria frustrada, assim como a noção de que Brasília não deveria nunca se transformar em uma grande metrópole, como é atualmente, com 2,6 milhões de habitantes.
Muito daquilo que Lúcio Costa pensou para aprimorar o funcionamento da capital não foi levado em consideração por nenhum dos sucessivos governos que em meio século passaram pelo Palácio do Buriti. O urbanista foi especialmente ignorado nas recomendações de cunho social e coletivista que contemplavam a qualidade de vida da maior parcela da população, que hoje se concentra em cidades carentes dos serviços mais básicos, distantes dos postos de trabalho, com baixos índices de desenvolvimento humano e altas taxas de criminalidade. Cerca de 80% dos brasilienses vivem fora do Plano Piloto, justamente onde estão 70% dos empregos.
O Estado não foi omisso, porém, na hora de construir o bairro Oeste Sul. Rebatizado como Sudoeste, o conjunto imobiliário brotaria da lama durante a gestão de Joaquim Roriz, que viabilizou no local previsto por Lúcio Costa a construção de um setor residencial e um parque. Roriz, assim como outros governadores do Distrito Federal que vieram depois, também tentaria materializar o setor Oeste Norte, mas o bairro, agora chamado Noroeste, não deixaria o mundo das ideias até que José Roberto Arruda assumisse o governo em 2006, tendo como vice o megaempreendedor imobiliário Paulo Octavio, um dos homens mais ricos da cidade, casado com a neta de Juscelino Kubitschek e autointitulado "herdeiro político" do fundador de Brasília.
Em janeiro de 2007, Arruda passou à Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) a missão de implementar de uma vez por todas o bairro que faltava para concluir o Plano Piloto. Junto com a nova área, seguindo os moldes do Sudoeste, estava prevista a construção de um novo parque. O projeto já vinha sendo delineado desde o governo Cristovam Buarque (1995- 1999) e aguardava apenas a vontade política do Executivo para se concretizar. Agora já não faltava nada.
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